A higienização através da moda: clean girl e a morte da originalidade
Se você esteve na internet nos últimos três anos provavelmente ouviu falar da "clean girl aesthetic", ou estética da garota limpa, se preferir. Na estética clean girl, a ideia é exibir uma aparência minimalista: visual descomplicado, maquiagem leve, cabelo simples e cores neutras. A clean girl deve aparentar ser natural e bonita sem esforço. Mas a clean girl é mais que um estilo de roupa específico, clean girl é um estilo de vida, uma veneração metódica a um tipo de corpo, rosto e padrão social. Para ser uma clean girl, você tem que ser mais do que limpinha, tem que investir totalmente em uma persona.
Eis que eu nunca engoli essa história de clean girl e parece que não sou a única. Vamos entender um pouco das raízes e dos problemas que acompanham a clean girl.
Estética como uma personalidade
Quando as aesthetics chegaram há alguns anos foi uma maravilha, como um facilitador de pesquisa. Você só precisa digitar uma palavra chave em inglês + aesthetic na caixa de busca que haverá centenas de referências de peças de roupas, acessórios, músicas, filmes... enfim, um estilo. Quando consumir coisas não foi mais o suficiente, ser essa coisa passou a ser essencial. De repente não era mais possível consumir determinado objeto sem se dedicar totalmente a uma estética, visando coesão entre personalidade, gosto pessoal e estilo de vida. Não basta ser, é preciso mostrar que é.
Desde 2022, a clean girl tem estado em alta na moda, não como uma tendência, mas como uma regra. Clean girl é mais do que um visual, é uma ideia, é o novo padrão. Estamos moldando nossa personalidade a partir de uma estética, quando na verdade, deveria estar acontecendo o oposto. A estética deveria servir à nossa personalidade. Nossas roupas, cabelos e gostos em geral deveriam ser uma auto expressão de quem somos, seres mutáveis e complexos. A perseguição constante para encontrar nossa caixinha causa frustrações que reverberam na nossa autoimagem e interações.
Old Money: estética inspirada em ricos aristocratas ingleses.
Quiet Luxury: estética refinada; peças básicas de alta qualidade e propõe uma abordagem que valoriza a discrição.
Perda do terceiro espaço
Há um fenômeno de uns anos para cá, impulsionado pelo avanço das tecnologias e pela pandemia, que diminuiu significativamente nosso contato com outros seres humanos: a perda do terceiro espaço. O conceito de terceiro espaço vem da sociologia e da teoria cultural e se refere a lugares que não são nem a casa (primeiro espaço) nem o trabalho ou a escola (segundo espaço), mas onde as pessoas se encontram, interagem e constroem relações: cafés, praças, bibliotecas, academias, bares, etc. Hoje, esse terceiro espaço está sendo gradativamente substituído pelas redes sociais.
Acontece que, nesses espaços, a representação da realidade é filtrada e curada. O usuário compartilha seus gostos e interesses ao mesmo tempo que alimenta o algoritmo com suas pesquisas. Diferente dos ambientes físicos, estamos com as redes sociais 24h por dia, imersos em um fluxo constante de conteúdo que nos joga cada vez mais para dentro de nichos específicos, como comunidades online, perfis de influencers, Tik Toks, moodboards no Pinterest... Com a perda do terceiro espaço físico, não são apenas nossas relações que se tornam mais mecanizadas, mas também nossas influências.
Essas influências, cada vez menos orgânicas, são moldadas pelos algoritmos das redes sociais, que operam sob a lógica do consumo. No contexto da clean girl, por exemplo, não vemos o esforço por trás da estética, apenas a versão idealizada. Isso reforça padrões inalcançáveis e nos prende a um ciclo infinito de comparação e consumo, onde a busca por pertencimento e autenticidade acaba, ironicamente, nos tornando todos iguais.
Paradoxo da autenticidade online
Em uma realidade controlada, até onde vai a naturalidade? Somos nós que controlamos as tendências ou são elas que nos controlam? Em 2025, onde as tendências somem tão rápido, que já nem são mais tendências, mas microtendências, ainda é possível ser original?
Ao mesmo tempo que queremos nos destacar, queremos também pertencer a um grupo. O desejo de pertencimento é quase que inato para o ser humano. Somos seres sociais e ficamos perto daqueles com os quais nos identificamos. A identificação visual sempre ajudou a formar comunidades. Punks, patricinhas, mandrakes, góticos, hippies e tantos outros grupos que construíram suas estéticas como símbolos de pertencimento.
Mas quando nossas influências vêm de um terceiro espaço manipulado e a nossa identidade está sendo regulada a partir da estética, nos tornamos incoerentes. De repente, tudo é performance: não importa mais quem somos, mas sim como nos apresentamos. Nosso feed é o nosso cartão de visita. E a rede social que deveria ser apenas uma ferramenta para interações mais rápidas e frequentes, passa a ser a realidade em si.
Não somos mais indivíduos ou parte de um grupo, somos um produto circulando de forma viral, alimentando a máquina infinita do algoritmo. Performar a estética escolhida, especialmente nas redes sociais, torna-se essencial. É nesse espaço que padrões de beleza são reforçados, comunidades se formam e a identidade digital se torna uma extensão (quando não uma substituta) da identidade real. Para o mundo, agora, somos essa persona. E, para encontrar a validação do grupo, seguimos o que está em alta. Assim, seguimos as regras implícitas das influenciadoras, padronizando nossa vida e ajustamos nossa imagem, tudo em nome da estética. Acabamos em uma corrida fracassada pela autenticidade, onde terminamos todos iguais por seguir o mesmo padrão. Daí o paradoxo.
Quem pode ser clean girl?
Em tese é fácil ser uma clean girl, você só precisa ser básica. Sem penteados elaborados ou usar muita maquiagem. Cores? Nem pensar. No máximo iremos de cinza ou bege. Quanto mais natural, melhor. Mas... existe beleza sem esforço? Óbvio que não.
A clean girl tem a pele perfeita, limpa, sem acne ou manchas. Ela segue rigorosamente sua rotina de skincare e sempre usa protetor solar. A clean girl está sempre com o cabelo penteado para trás, com gel, preso em um coque. A clean girl tem o cabelo liso e bem comportado. Ela usa joias discretas, mas são sempre de ouro. Ela usa roupas simples, mas são cashmere. Não usa maquiagem, mas tem procedimentos estéticos. A clean girl nunca pularia um treino. Ela faz pilates e se alimenta bem todos os dias. A clean girl é magra. Ela nunca quebra a rotina. Ela é focada, disciplinada e bonita. A clean girl é a meta a ser atingida.
A manutenção exigida para ser uma clean girl é um trabalho pesado, e mais do que isso: é um trabalho caro. As verdadeiras clean girls tem dinheiro. Como eu disse, não é só aparência, também é a performance. Por trás de toda clean girl arrumadinha que acorda cinco horas da manhã para começar seus exercícios, há muito privilégio. Não precisa ser um mega gênio para ligar os pontos e ver o recorte social que essa trend atinge. Jovens loiras de classe média alta (para cima), com muito tempo para si mesmas.
A clean girl vende, e vende muito bem, um estilo de vida idealizado focado em saúde e autocuidado. Vende a perfeição sem esforço e sem mistérios. Porém, quando a meta não é atingida, a culpa cai sobre a menina comum que não consegue conciliar seus estudos, trabalho, afazeres domésticos, exercícios físicos, ritual de skincare, alimentação e manter a presença nas redes sociais. A pele está ruim? Culpa dela. Se está cansada? Culpa dela. Não está com notas melhores? Culpa dela. A clean girl consegue e ainda está belíssima, do jeito que Deus, o dermatologista e a produção publicitária a fez. A clean girl é o reforço cintilante da meritocracia. E se você não consegue ser como ela, a culpa é sua.
Elitismo disfarçado
A clean girl traz dentro dela subtextos racistas, classistas e capacitistas. O ideal de beleza não é, e nunca foi, para todos. Ele sempre é criado para distanciar a classe dominante do povo. Quem cria o padrão é quem está por cima, assim mostra quem é superior e quem é inferior. Sempre foi assim.
Houve um dia que o padrão de beleza era ser mais gordinho, porque mostrava que aquela pessoa tinha fartura, por consequência mais dinheiro. Agora é ao contrário, o padrão é ser magro porque mostra como aquela pessoa tem boa alimentação, nada de industrializados, pratica uma rotina intensa de exercícios, faz procedimentos estéticos e tem acesso a especialistas, luxos que poucos podem pagar.
O padrão de beleza é eurocêntrico, onde o menos é mais. Tudo que vem da Europa é melhor, mais refinado, mais chique, em detrimento das estéticas do Sul Global. Quando a clean girl viralizou em 2022, passou a ser vendida como uma estética completamente nova e elitizada. O rosto da clean girl era agora o rosto branco das jovens européias e norte americanas. Mas pasmem: usar gloss, argolas douradas e pentear o cabelo para trás com gel já estava sendo usado há muitos anos antes por garotas negras e latinas. Podemos observar os filmes dos anos 2000: a melhor amiga racializada da protagonista quase sempre vai estar com essas características. Quando o estilo é periférico, ele não é cultuado. Ele só se torna tendência quando é apropriado, embalado e revendido por quem já ocupa o topo da hierarquia.
Clean Girl vs. Fubanga
Quando esse negócio de clean girl começou, surgiu também a fubangacore. Mas que raio é esse de fubanga?
Fubanga apareceu, primeiramente, como um termo pejorativo para insultar mulheres que se vestissem de forma considerada brega. Quem não se lembra da trend tenebrosa “coisas que eu acho brega”? No início, parecia inofensivo, até o esquadrão da moda elegante surgir na trend para disseminar preconceitos e listar tudo que envolvia o estilo de meninas e mulheres de classes mais baixas. Unhas decoradas, aplique no cabelo, joalheria exagerada, maquiagem forte… qualquer marca mais evidente de autoexpressão era fubanga. Não é à toa que a palavra foi ressignificada pelas próprias mulheres alvo da trend, que passaram a assumir fubanga como nome do seu estilo.
Além da evidente desculpa para espalhar racismo e elitismo em forma de brincadeirinha na internet, a trend também se alimentou da rivalidade feminina. Se de um lado, temos a garota reservada, que mora no bairro nobre, veste bege, bebe smoothie de abacate e faz yoga; do outro, temos a mulher trabalhadora, da periferia, que usa brilho, bebe cerveja e fala alto. De um lado, temos um ideal feminino delicado, jovem, ela é clean, ela é girl; do outro, temos uma figura racializada, “brega” e extrovertida, que briga com a imagem da mulher ideal.
Percebe que, se um lado é rico e limpinho, o outro só pode ser pobre e sujo? Mais do que uma rivalidade entre mulheres, aqui se ilustra uma rivalidade entre classes. A ideologia na moda é forte e presente.
A tendência é conservadora
Nos últimos anos, vimos um conservadorismo crescente, e isso se reflete na moda. Moda é política. Nunca deixo de me surpreender com os dados que mostram que, quanto pior o cenário político, mais “feminina” a moda se torna. As saias ficam mais curtas, os saltos mais altos e os manequins menores. Esse fenômeno não é novo: ao longo da história, momentos de crise econômica e avanço conservador frequentemente trouxeram um retrocesso na representação e autonomia feminina, reforçando ideais de feminilidade tradicional e restritiva.
Não por acaso, a clean girl surge justamente como a nova fórmula da mulher da década. Corpos magros, brancos, disfarçados de vigilantes da saúde, trouxeram sorrateiramente a cultura da dieta de volta à luz do sol. Os anos 2000 estão com tudo: blogs, minissaias, música pop, recessão econômica e magreza extrema. Esse resgate dos anos 2000 não é apenas nostálgico, mas também um reflexo do desejo por segurança e estabilidade em tempos incertos. O que está por trás da clean girl é mais do que uma estética minimalista; é um retorno disfarçado a padrões femininos antigos.
A clean girl é a jovem mulher de padrões altos, e por isso se cuida tão bem. Um dia, ela vai se casar com um homem de alto padrão, guardar seu diploma na gaveta, e se tornar uma esposa-troféu.
As tradwives são outro grupo de mulheres que ganhou destaque no último ano. As tradwives (ou esposas tradicionais) fazem sucesso exibindo nas redes sociais suas rotinas de cuidado com a casa, o marido e os filhos, sempre com uma estética retrô, remetendo aos supostos "anos dourados" das décadas de 1950 e 1960. Naquele tempo é que era bom, quando a mulher só precisava ficar em casa, assar bolos e se manter bonita para quando o marido chegasse. Mas a romantização desse passado ignora as desigualdades e restrições enfrentadas pelas mulheres dessa época. Uma mulher financeiramente dependente do marido nunca será verdadeiramente autônoma, mas sim uma extensão dele. Embora ele possa "sustentá-la", esse sustento tem um custo: trabalho doméstico e cuidados não remunerados. Ao contrário do marido, que trabalha em horário comercial, a esposa tradicional trabalha 24 horas por dia, sete dias por semana, sem salário, sem reconhecimento e sem independência real.
A clean girl de hoje será a tradwife de amanhã.
Esse fenômeno não está restrito apenas à moda e às redes sociais, mas também se reflete no entretenimento. Há algum tempo tenho visto as reações do público mais jovem redescobrindo Sex and the City, e essa nova audiência odeia Carrie Bradshaw. É verdade que Carrie tem muitos defeitos e muitas atitudes hoje são quase indefensáveis (o que mostra como evoluímos nos últimos 26 anos). Mas também é verdade que Carrie teve um papel fundamental na evolução de personagens femininas para TV. Carrie ainda é a protagonista e a alma de Sex and the City, não podemos tirar esse crédito dela.
Em vez de acompanhá-la, o novo público prefere as coadjuvantes. As outras três personagens que compõem o grupo principal são maravilhosas e assim como Carrie, também tem defeitos, mas o público atual escolhe deliberadamente se esquecer disso.
Há uma parcela significativa de meninas que endeusam Charlotte York (ou a coitada da Natasha, com seus três minutinhos de tela), por ser uma meta de status e sofisticação. Ela é disciplinada, romântica e, basicamente, a anti-Carrie. Nos últimos anos, a veneração crescente por Charlotte, seu estilo, seu casamento e seu modo de pensar não é coincidência. Charlotte é incrível e tem muitas qualidades, mas ela é o exemplo perfeito da clean girl que vira uma tradwife.
Estamos testemunhando uma nova fase de conformidade disfarçada de escolha. A moda, a cultura e o entretenimento estão sempre em um ciclo. No momento atual é evidente um desejo de retorno à feminilidade tradicional. Esse desejo, no entanto, não é espontâneo. Mulheres no mundo todo não acordaram e simplesmente pensaram: “hum… e se eu largasse minha carreira e vivesse apenas para minha aparência e família?”. Esse desejo foi ideologicamente manipulado para o controle dos corpos femininos. Diante da crise econômica, há uma necessidade estrutural de que as mulheres tenham mais filhos para abastecer o mercado de trabalho com futuras gerações de trabalhadores. Ao mesmo tempo, espera-se que permaneçam submissas, desencorajadas de lutar por seus direitos e limitadas pelo senso comum, que perpetua as ideias da classe dominante como verdades universais.
Maximalismo é a estética anticolonial
Coco Chanel uma vez disse: “Antes de sair de casa, se olhe no espelho e tire um acessório.” Esse é o legado minimalista da elegância europeia: muito preto, recortes retos, um visual frio, uniforme… sem graça. O minimalismo da clean girl está profundamente ligado ao industrial, à produção em massa, ao que é funcional, replicável e sem excessos. A estética colonial preza pela simplicidade controlada, pela neutralidade e pela contenção, uma forma de padronizar e apagar outras culturas.
Agora, se olharmos para os países do Sul Global, o que esses povos têm em comum esteticamente? Cores! Nós temos muitas cores, texturas e adornos chamativos. Nossa expressão visual é maximalista. O excesso mistura e incorpora arte ao vestuário.
Me revolta ver mulheres removendo suas tatuagens, piercings e pintando os cabelos de cores naturais para atenderem a um padrão estético que foi feito para reduzi-las. Pinturas corporais, piercings e tatuagens sempre foram parte da identidade dos povos não brancos. Quando a estética precede a identidade, se perde o que é mais precioso: a individualidade.
O visual clean, pode até funcionar na Europa ou nos Estados Unidos, mas aqui é América Latina. Aqui, nós mulheres, gostamos de usar batom vermelho, sombras coloridas, estampas e salto alto.
O maximalismo na moda cria visuais únicos e autênticos, rejeitando a homogeneização imposta pelos padrões eurocêntricos. Ele consome de produções artísticas e artesanais, como crochê, bordados, pinturas, miçangas e tecidos variados. Ele valoriza o que é feito com tempo, com história e com memória cultural. Além disso, também impulsiona a economia local, comprando diretamente de artistas e pequenos produtores.
Ser maximalista é resistir à estética colonizadora, é uma afirmação de identidade. É vestir quem somos, sem medo de excesso, porque nosso excesso também é beleza.
Considerações finais
Se o estilo clean girl, faz com que você se sinta bem e confortável, vá em frente. Mas não transforme todos os mínimos detalhes da sua vida em prol de uma estética. Tendências passam. Modismos viralizam e depois são esquecidos. Seu estilo é o que fica. A moda deve servir à sua personalidade e aos seus gostos, não o contrário.
Esses dias, vi um TikTok de uma moça dizendo que se sentia enganada, pois gastou muito tempo e e$forço montando um guarda-roupa completo em paleta de cores neutras e peças de alfaiataria, para agora a nova tendência ser o Boho Chic.
Sinto informar que era óbvio. A moda faz parte do padrão de beleza, e como o padrão não deve ser alcançado, ele sempre muda. Lembre-se: não é sobre o que está se usando, mas quem está usando. Assim que se torna acessível, não é mais interessante para as elites usarem. O mesmo acontecerá com o Boho Chic. Ele sairá das passarelas, entrará no circuito das grandes marcas e, só então, irá para as lojas de departamento. Quando todos estiverem usando, se tornará obsoleto.
É possível sobreviver às passagens da moda preservando o seu estilo pessoal. Se conhecer é o melhor caminho. Moda existe para ser experimentada, para brincar e, acima de tudo, para se expressar.
Texto incrível!!
Eu acho tão importante tocar nesse tema! Espero que esse post bombe, merece muito💗